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Câncer, obesidade, hipertensão, Alzheimer e sobretudo Covid-19 estão entre as muitas doenças cuja compreensão e o desenvolvimento de medicamentos dependem dos estudos com animais geneticamente modificados. E a dificuldade de acesso a essas espécies vem atrapalhando este processo. AP Photo/Alexander Zemlianichenko

Produção de animais transgênicos: desafio para estudo de doenças e desenvolvimento de vacinas no Brasil

A pesquisa biomédica e o desenvolvimento farmacêutico no Brasil enfrentam um desafio crítico: a dependência da importação de animais geneticamente modificados, que permitem estudar a função de genes no organismo. Esses animais, também conhecidos como transgênicos, quando um gene é superexpressado, ou nocaute (o termo vem do inglês, knockout), quando a sua expressão é bloqueada, são criados em laboratório usando técnicas que bloqueiam a expressão de um gene específico, para se tornarem modelos para estudos de muitas doenças genéticas.

Essenciais para a compreensão de muitos fenômenos biológicos, eles permitem estudar a função de genes em contextos abrangentes, como o desenvolvimento embrionário, uma resposta imunológica, no envelhecimento ou na doença. O camundongo compartilha mais de 80% do seu genoma com o ser humano e com isso se torna um excelente modelo de estudo. Então, entender as funções dos genes do camundongo é essencial para entender o genoma humano e como diversas doenças humanas surgem e evoluem.

A importância dos animais geneticamente modificados ficou ainda mais evidente durante a pandemia de Covid-19. Na corrida pelo desenvolvimento de vacinas, a sua falta foi um obstáculo significativo. Afinal, camundongos e ratos não são naturalmente infectados pelo coronavírus.

Para que os estudos pudessem prosseguir, foi necessário inserir nos camundongos o gene humano do receptor utilizado pelo vírus para invadir as células, criando assim animais transgênicos suscetíveis à infecção. Esses modelos foram fundamentais para o desenvolvimento de todas as vacinas disponíveis atualmente, além de serem essenciais para a pesquisa de novos tratamentos e para a compreensão da evolução da doença.

Essa estratégia de pesquisa contra a Covid-19 pode ser aplicada a muitas outras doenças humanas, como câncer, obesidade, hipertensão e Alzheimer. A produção desses modelos é vital para investigar mecanismos de doenças e desenvolver possíveis tratamentos, visando melhorar a qualidade de vida humana e animal. Porém, a importação desses modelos animais é complexa e tem um custo muito alto, o que gera um gargalo significativo para o avanço científico e tecnológico em toda a América Latina.

Soluções empreendedoras

No entanto, esse entrave não se dá por falta de competência científica na região. Possuímos no Brasil uma expertise única, que nos permite oferecer modelos de animais transgênicos de alta qualidade genética e sanitária, assegurando resultados experimentais reprodutíveis e confiáveis. Em nosso laboratório, no Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CCS/UFRJ), somos especialistas em técnicas de biologia molecular associadas à engenharia genética e desenvolvemos pesquisas com métodos inovadores em procedimentos de reprodução assistida de camundongos, incluindo a produção e congelamento de embriões e espermatozoides, fertilização in vitro, micromanipulação e transferência de embriões.

Portanto, em 2021 decidimos apostar em criar uma startup incubada dentro da universidade, a Altera Genetics, por meio do Edital Doutor Empreendedor da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Os recursos foram aplicados nos laboratórios de Animais Transgênicos e de Inovação em Reprodução Assistida, ambos do CCS/UFRJ. Com esse apoio, a iniciativa ganhou projeção e fortaleceu a posição do Rio de Janeiro como um centro de excelência em biotecnologia.

O primeiro camundongo nocaute do Rio de Janeiro

Esse projeto já está rendendo frutos interessantes. No CCS/UFRJ, realizamos a produção do primeiro camundongo nocaute do Rio de Janeiro, utilizando a técnica de edição do DNA, chamada de CRISPR.

Assim, inativamos um gene que está envolvido na agregação de plaquetas do sangue e pode ser um alvo para o tratamento de trombose e outros distúrbios de coagulação. Conhecido pela sigla P2RY12, esse gene também atua na migração da micróglia, células do sistema imunológico envolvidas no início do processo de inflamação no sistema nervoso.

O gene alterado foi escolhido devido ao interesse de nossos colaboradores do CCS/UFRJ, os professores Robson Coutinho e Luiz Eduardo Sávio que, junto com a aluna de doutorado Caroline Fonseca, trabalham em linhas de pesquisa que podem se beneficiar dessa conquista.

Foram cerca de oito meses entre a definição do alvo genético, a compra de reagentes importados e as três rodadas para a produção do animal. Cada rodada inclui: nascimentos, coleta de material genético e caracterização da alteração desejada. A nossa busca agora é reduzir esse tempo para três a quatro meses. Hoje, vários laboratórios da instituição já utilizam o animal nocaute e muitos outros têm demonstrado interesse para a produção de novos animais.

Impacto e futuro

A produção de modelos animais geneticamente modificados no Rio de Janeiro não só coloca o estado na vanguarda da pesquisa genética, mas também destaca o impacto potencial na investigação de novos tratamentos para muitas doenças. De um lado, a biologia molecular nos forneceu as ferramentas necessárias para a realização das edições genéticas e, do outro, a fisiologia da reprodução foi essencial para o manejo e produção dos embriões utilizados. Essa conquista é, sem sombra de dúvida, um avanço marcante para a ciência fluminense

Com o domínio dessa tecnologia, acreditamos na rapidez de produção de novos animais geneticamente modificados ao invés de importá-los. A tecnologia CRISPR acelera muito esse processo e permite que alterações genéticas mais desafiadoras sejam realizadas. Com isso, os centros de pesquisa do estado poderão ganhar autonomia com a diminuição da necessidade de importação de modelos animais. Esta conquista é um passo significativo para a autossuficiência científica e tecnológica, potencializando a capacidade de inovação e a competitividade fluminense no cenário global.

Assim, a iniciativa ganhou projeção e fortaleceu a posição do Rio de Janeiro como um centro de excelência em biotecnologia. Agora, visamos atender às demandas específicas de nossos colaboradores, além de nos preparar para as futuras demandas de saúde pública. É essencial que os centros de pesquisa do estado do Rio de Janeiro possam contribuir para o avanço da pesquisa biomédica e tecnológica no Brasil e no mundo, proporcionando soluções inovadoras e de alta qualidade na produção de modelos animais geneticamente modificados.


Os autores ressaltam o apoio da FAPERJ, que por meio de vários editais permitiu o crescimento da Altera Genetics e a implementação de tecnologias avançadas em seus laboratórios. Inestimável também foram as colaborações dos técnicos Michelle Guimarães, Luiz Berbert da UFRJ e Ademar Couto, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico da Fiocruz.